sábado, 26 de maio de 2007

ENTREVISTA - RICARDO ARAÚJO


UMA CONVERSA SOBRE A FILOSOFIA




Ricardo Araújo é filósofo com doutorado pela UFRJ. Nesta entrevista (realizada por email) ele conversa sobre a filosofia e o filosofar, sobre a literatura como abertura para o pensamento, sobre Nietzsche e Heidegger e sobre a possibilidade/tarefa do pensamento hoje.




- O que levou você à filosofia?


Conheci a Filosofia através da literatura. Por volta dos dezessete anos, fiquei viciado em literatura russa: Tolstoi, Gorki, Tchekov e, acima de todos, Dostoievski. Fiquei muito curioso com um tal de Nietzsche, que as introduções aos romances costumavam mencionar, ligando-o a Dostoievski, de forma muito próxima e através de uma palavra estranha, “niilismo”, que eu acreditava derivar, de algum modo, do nome “Nietzsche”. Na mesma época, li “O lobo da estepe”, de Hermann Hesse, e fiquei absolutamente fascinado pela obra. Mas fiquei ainda mais impressionado pelo fato de ter lido em algum lugar que o personagem central, Harry Haller, havia sido inspirado naquele mesmo Nietzsche que ligavam ao meu ídolo russo. Daí para as primeiras leituras do filósofo foi uma questão de necessidade intelectual. Li de uma só vez todas as obras que encontrei, quase sempre nas edições da Ediouro, com suas traduções horríveis, mas valiosas pelo pioneirismo e pela acessibilidade.

Em virtude desse encontro, em uma época de enorme avidez intelectual acompanhada por igual imaturidade, não poderia haver outro resultado senão virar um nietzschiano da pior espécie, daqueles que Nietzsche confessava temer e que caricaturou como “os seguidores” em seu Zaratustra. Arrisco-me a dizer que a figura do burro, adorado como um deus no final da obra, é parcialmente composta por esta idéia do “seguidor”, o que pode ser deduzido da sua resposta a tudo que lhe é dito: “Mas a isto o burro disse ‘I-A’”.

Então, passei quase quinze anos dizendo “I-A” a tudo que Nietzsche havia dito, só conseguindo me libertar da minha própria imaturidade de discípulo quando terminei minha dissertação de mestrado sobre a “vontade de poder”, deixando como resultado dessa jornada: uma dissertação, alguns artigos, algumas palestras, a leitura obcecada e inúmeras vezes repetida de tudo que ele escreveu e de incontáveis obras de comentadores. Aí, depois de me tornar um “especialista” em Nietzsche, parei de ler qualquer coisa escrita por ou sobre ele, não voltando a fazê-lo até hoje, e fui conhecer a Filosofia, por mim mesmo e não mais guiado por seus olhos, embora seja profundamente marcado por algumas idéias nietzschianas e deva admitir que ele tocou a Verdade de um modo que poucos fizeram.


- O que é a filosofia?


Essa é a pergunta que Platão lançou de forma sub-reptícia no “Sofista” e que virou parte da própria Filosofia. De fato, esta começa apenas a partir de Platão e só se torna digna desse nome quando, ao mesmo tempo em que tenta “aprisionar” os entes na linguagem e ligá-los ao que é (ao ser), ela se mantém navegando no leito daquela pergunta. Assim, a Filosofia é aquele pequeno (em relação à duração e à quantidade, mas não ao significado) recorte na linguagem que consegue se manter nas três exigências mencionadas, ou seja, a Filosofia é um discurso simultaneamente: 1) fundado em si mesmo, o que só ocorre à medida que se questiona radical e permanentemente; 2) capaz de reter, unívoca e essencialmente, os entes para os quais se volta, sejam eles quais forem (a linguagem, o homem, a liberdade, o belo ou, por outro lado, o político, o amor, o riso, a técnica, etc.); 3) voltado para a totalidade do que é, a cada vez que se volta para um ente qualquer.



("cena" da ópera O Ouro do Reno de Richard Wagner)


- Qual a necessidade da filosofia no mundo contemporâneo?


Qual a necessidade da fundação de uma casa para aqueles que nela habitam?

O mundo contemporâneo foi erguido, em muitos aspectos, sobre o percurso histórico da Filosofia. Mas exatamente por ter servido como fundamento, a Filosofia não “aparece” mais, não pode ser vista, a não ser por aqueles que conhecem a construção histórica em que estamos. Para estes, o mundo está repleto do selo da Filosofia: da organização política à vigência da técnica; da cristandade às ciências particulares; do senso comum às crises éticas. Muito do nosso modo de vida, de nossas instituições, de nossa linguagem, de nosso modo de pensar mais cotidiano são desdobramentos de pensamento filosófico, ainda que subterrâneo, diluído, utilizado, desvirtuado, etc..

Por outro lado, não faltam “idiotas da objetividade” para menosprezar aquilo que não podem compreender, o que nos leva a ouvir tolices que vão do cotidiano e ingênuo “pra que estudar esses homens mortos?!” ao cientificista e arrogante “só o saber científico é válido”. Mas até mesmo o utilitarismo e o positivismo, esses “filhos feios e embaraçadores” surgem da Filosofia e a ela retornam, ainda que de forma capenga, quando precisam dar razão de si mesmos, configurando aquilo que Dostoievski chamou de “semiciência”, um saber que não chegou até onde deveria e que, por isso mesmo, não sabe de si.

Volto então à pergunta. Há, ainda, alguma necessidade da Filosofia? Ou não será, talvez, que nunca houve uma e que a Filosofia pertence àquele âmbito do abundante, do transbordante de si mesmo que, no fim das contas, caracteriza a liberdade humana? Se for assim, a Filosofia pode ser comparada ao ouro do Reno da fábula wagneriana: aquele que amaldiçoasse o amor poderia forjar desse ouro o anel do poder, tornando-se imensamente poderoso; aquelas que o guardavam se extasiavam com ele, desfrutando-o; porém, para além dessas perspectivas, mesquinhas ou não, o ouro do Reno brilhava em si mesmo, gratuitamente, em toda sua abundante plenitude.


- O que é fazer filosofia hoje?


Difícil fugir do diagnóstico heideggeriano... Por razões de tipos diversos, econômicas, históricas, sócias, mas, no fundo, ontológicas, como destino/envio do ser, há muito que a Filosofia se tornou uma atividade técnica, isto é, acadêmica, erudita, operacional e, portanto, produtiva, geradora de resultados que alguns chegam a considerar “científicos”), . Todavia, isto não significa que, longe desse burburinho, ela não esteja viva, ainda que como em um casulo, metamorfoseando-se em figuras que não conhecemos, mas cuja possibilidade Heidegger, por exemplo, tentou indicar com sua obra madura, especialmente com o que ele denominou o “Andenken”, um pensamento voltado para o ser, não mais como fundamento ôntico, como causa última do real, mas como aquilo que há e que a Filosofia, antes de se dissolver nas ciências, em particular, e na constituição do mundo contemporâneo, em geral, buscou indicar.


- Qual a tarefa do filósofo num tempo de relativismo, como o nosso?


Se “tarefa” for compreendida como dever, como norte, diria que é não fazer filosofia como técnica. É sair das correntes, linhas de pesquisa, áreas de interesse e tudo aquilo que caracteriza o academicismo contemporâneo. Isto não significa sair do meio acadêmico no sentido prático, isto é, deixar de lecionar, de publicar em periódicos especializados, de participar de congressos, etc., mas significa pensar com uma pretensão que talvez não caiba em tais práticas e que, certamente, não será bem vista pelas perspectivas correspondentes; significa arriscar o olhar na direção daquilo que moveu os filósofos, daquilo que fez reluzir o “ouro do Reno”, em vez de olhar para seu reflexo, escarafunchando-o tecnicamente com um perene “I-A”.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

História do Estruturalismo

“História do Estruturalismo” é um daqueles livros que tem de constar na estante, principalmente pelo rigor de sua proposta de história intelectual sobre o estruturalismo. A publicação é dividida em dois volumes, o primeiro “O campo do signo”, busca contextualizar a ascendência do estruturalismo no momento imediato à Segunda Grande Guerra até meados da década de 1960, considerado como marco de sua proposta de desconstrução.

A par das publicações de Barthes, Lévi-Strauss, Foucault e Lacan (as imagens da capa) e mais uma imensa quantidade de entrevistas com outros próceres, Dosse surpreende com sua análise do projeto estruturalista em sua ênfase nos elementos de universalidade, apreensão inteligível, mais a relação homem/estrutura.

Já no segundo, “O canto do Cisne”, Dosse busca compreender a reinvenção e a desconstrução, além de situar o momento crucial do estruturalismo, o que, segundo ele, se dá com a publicação dos livros: Les Mots et les Choses de Foucault, Ecrits de Lacan e Critique et vérité de Barthes, cujo ponto final serão os acontecimentos de 1968 — quando as estruturas desceram às ruas. Ao final do volume, Dosse elenca as críticas feitas ao estruturalismo, tais como a desistorização, e mesmo a atitude de alguns intelectuais em rever as suas posições.

Ademais de isso, só posso dizer: boa leitura. Mas aproveite também a belíssima edição da EDUSC, uma caixa que deram o nome de EDIÇÃO PREMUIM com os dois volumes encartados. Uma edição digna de François Dosse e também do seu objeto de estudo.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Dica de livro






Hoje, resolvi indicar a leitura de um livro que foi muito útil para que eu entendesse melhor a questão das cotas e, ao invés de dar opiniões não fundamentadas, pudesse pensar melhor sobre o assunto.


Aqui vai um trecho do texto que está no verbete Ali Kamel do Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ali_Kamel):

"Em agosto de 2006, lançou o livro "Não somos racistas" (Nova Fronteira, 144 páginas), em que critica a adoção de cotas raciais, sustentando a tese de que, ao contrário de combater o racismo, elas podem dar origem ao ódio racial, segundo ele, até aqui inexistente no Brasil. No livro, o autor diz que o Brasil não é uma nação estruturalmente racista, embora admita que o racismo exista no país como em todas as sociedades humanas. O autor se dedica a analisar as estatísticas que dão conta da desigualdade entre negros e brancos e declara que nada nelas permite afirmar que a desigualdade é fruto do racismo. Para ele, o abismo que separa negros e brancos nos indicadores sociais decorre fundamentalmente da pobreza, o que o leva a defender investimentos realmente expressivos em educação. Além disso, o autor discute como a questão do negro foi tratada pela academia, dos anos trinta aos nossos dias".


Esse livro é facilmente encontrado e custa em média 22 reais.


Boa leitura!

domingo, 20 de maio de 2007

De romper o silêncio e o espaço em palavras



“Lá se vão uns dez anos em que não escrevo nada”. A frase é perfeitamente aceitável e todos me compreendem. Porém, há uma questão. Aliás, duas: uma social e outra moral. Moralmente a frase é muito ruim. Leia em voz alta e o sentido é outro. Novas palavras aparecem e umas delas é “lassivão”, uma grande lascívia (!). Vamos, então, à questão social. Mas, antes, eu creio que você deve estar se perguntando: “Por que Elton escreveu isto?”. E assim sou levado à outra pergunta: “Por que eu tenho de dizer, de romper a barreira do silêncio? De tirar algo que está em mim e dizê-lo ao(s) outro(s)”.

Sim, eu tenho quase dez sem rascunhar uma palavra além aquelas da graduação, pós-graduação et cetera. Mas o que lhe importa e por que eu tenho de lhe dizer isto? O que me obriga fazê-lo? A reposta é simples: nada. A não ser a necessidade. A sabedoria popular diz que temos duas orelhas e uma única boca para ouvirmos mais e não falarmos tanto. Outro ditado diz que “quem conversa demais dá bom dia ao cavalo”. O silêncio é precioso e a palavra exagerada nociva. Essa foi uma das primeiras conclusões a que cheguei ao pensar em escrever para o CATINGUEIROS. Pois, embora eu tenha aceitado de pronto o convite, pensei: há necessidade disso?

Hoje minha resposta é sim, há mesmo! E não porque estamos em busca de platéia, de um eco para as facilidades próprias ou para não nos acharmos tão sozinhos no mundo. E há também outra coisa, nesse mundo marcado pelo excesso, os “mais” se tornam os “menos”; logo a fruição, o prazer e outras mumunhas mais que se escrevem por aí são desmedidas porque revelam uma equação horrível: quanto menos, mais, e, quanto mais, menos. Assim: quanto menos se vive, mais se escreve, ou dito de outra maneira: quanto menos se vive mais se tem coisas a fazer. O amigo Johnny costuma dizer que nada é mais cansativo que descansar. Além disso, a vida, tão gloriosa, se tornou um texto sobre outros tantos muito chato!

Voltemos para o início – vou limitar-me a isso. No início eu disse que a minha palavra era perfeitamente aceitável e compreensível. Depois, eu perguntei se havia razão de dizer. E ao fazer esse percurso, chego àquela noção de Paulo: todas as coisas são lícitas, mas nem tudo convém. É legítimo, portanto, o que há de suceder a partir deste momento aqui neste BLOG, pois é pertinente. Desse modo, meus bons amigos, não irei mais rejeitar as palavras.

Embora ao acaso, isso me faz lembrar um admirável mestre dos tempos da faculdade, quando não líamos os textos nem fazíamos os exercícios, ele não nos deixava pronunciar uma única palavra sequer. E completava: “aqui não se aceita intervenção de ignorantes”. Ou seja, daqueles que sabem e fazem pouco ou deixam para depois depois...

Poderíamos ter começado a empreita bem antes. Mas não lamento o não­-acontecido nem mesmo o tempo de antes de hoje. Mas fica a lição. “Nem todos os anos que passam se vivem: uma coisa é contar os anos, outra é vivê-los”, disse o Padre Vieira, mas poderíamos dizer: uma coisa é contar lamúrias, outra é viver. “Age quod agis”. Assim como assim, havemos de fazer bem isto daqui também, grande abraço.

Elton

sábado, 19 de maio de 2007

À mancheia

Asta su Abuelo Goya




Em dias em que o valor de um espetáculo artístico se mede mais pelos reais do cachê ou da notoriedade midiática dos artistas que dele participam, que podem esperar as pessoas que vivem nas cidades do interior do Brasil, fora dos eixos geográficos economicamente privilegiados ou dos circuitos dos grandes acontecimentos culturais? Por certo que os rotineiros discursos autopiedosos de muitos provincianos com a síndrome da exclusão dão uma certa sensação de alívio: elegem os inimigos do conhecimento; desqualificam o sistema de excludência em que vivemos; lamentam os filmes não vistos e as exposições não-visitadas; mas é só. Os inimigos permanecem invisíveis; o sistema, e o que quer que seja que essa palavra signifique, permanece na comodidade intangível de que só desfrutam as abstrações mais distantes; e o que não se viu, se perdeu... até que um dia se possa ver.
Nas cidades do interior do Brasil – e não apenas nelas, é óbvio – é preciso que se ressuscite o já cansado conceito de cidadania, que faria acordar do sono da inapetência as secretarias de cultura de cada município, que existem, se não estamos equivocados, para elaborar e executar projetos culturais; para fazer acontecer um calendário mínimo de celebrações artísticas; para fomentar, em parceria com escolas, centros de cultura, universidades e agremiações afins diversas, a produção e a execução de eventos dessa natureza.
Não se deve, no entanto, pensar no Louvre, quando se pede que um museu possa mostrar para o visitante a história de uma cidade, por mais modesta que ela seja; não se devem esperar as pompas de um grande palco, quando um conservatório prepara recitais com os seus alunos, para mostrar para o público um pouco de música de concerto, totalmente ausente dos repertórios dos programas de rádio, ou mesmo das prateleiras das lojas convencionais de cds e dvds; não se deve esperar muita suntuosidade, quando determinadas datas comemorativas, em dimensão regional ou nacional, são celebradas em espaço público, por artistas locais. Mas é possível, perfeitamente, manter uma vida culturalmente ativa, dignificando valores que de há muito a grande mídia, sobretudo a televisiva, sobretudo em horários razoáveis para o público, não veicula mais. Manter vivo o gosto pela cultura é tarefa das autoridades – como já o dissemos – mas também de cada pessoa. O estudante, o trabalhador, o intelectual, o próprio artista, devem cultivar hábitos que estimulem quem cria e também quem deve fazer circular a informação cultural.
Saindo do âmbito das generalidades, situo o meu discurso em Vitória da Conquista, Ba, cidade onde moro. Cerca de trezentos mil habitantes, dois campi de universidades públicas e algumas outras instituições de ensino superior privado. Juventude festiva e acolhedora. Comércio pujante. Pólo educacional em torno do qual gravitam diversas outras cidades do sudoeste baiano e até do Norte de Minas. Terra do frio. Dois museus, um centro de cultura, um cinema multiplex, um cinema falido (o que aqui é uma verdadeira instituição), uma biblioteca pública municipal e outras duas (bibliotecas?) pertencentes às universidades UESB e UFBA. Blábláblá, blábláblá. Pois bem, clichês à parte, não é necessariamente para aplicar o que fora dito mais acima que eu me refiro a Vitória da Conquista. Eventos culturais, mesmo que esporádicos, mesmo que restritos, mesmo que monotemáticos, os há. E quem não gostar que faça melhor, ou diferente. Eis o problema: todo mundo gosta. Ou se não gosta, ainda não se manifestou. É o outro abacaxi. Parece-me chegada a hora de romper o consenso. Por exemplo: “Conquista é uma cidade com vocação para o cinema.” Por que motivo? Poderia alguém perguntar. E esse alguém até poderia ser eu. Seria porque Glauber Rocha nasceu aqui!? Seria porque Walter Sales escolheu-a para palco de Central do Brasil?, que inclusive concorreu ao Oscar? Não quero ser irônico, tampouco iconoclasta, mas levo muito a sério esta cidade, lugar onde nasci, cresci e ainda vivo, para acreditar que ela, ou qualquer outra, não importa, tenha VOCAÇÃO para alguma coisa. Glauber, por exemplo, na minha modesta opinião, chegou onde chegou, não porque aqui nasceu, mas porque daqui se foi (voltou algum dia?), ou se pode fazer cinema fora dos grandes centros, em algum vocacionário sem aparato técnico e humano? “Mas Elomar”, diria alguém, “aqui ficou e é quem ele é.” O ofício de Elomar Figueira (Ave, Mestre!) – outro consenso absoluto, do qual também faço parte, porque amo profundamente o seu cancioneiro – felizmente é menos complicado. Um violão, a imensidão da caatinga, o cicio dos bichos e a alma sensitiva de um rústico peão com diploma de arquiteto, que Fugiu das urbes imensas para não se contaminar com os estrangeirismos e modismos e deslumbramentos e toda sorte de tumores de que só o sertão poderia salvaguardá-lo. E parece que salvaguardou. Nada de dodecafonismo, de emepebismo, de jazzismo, de encheções da grande mídia, de teorias excessivas, da técnica apurada ao contrapeso da nenhuma inspiração. Mais uma vez, na minha modestíssima opinião, bater o pó das influências alienígenas às portas da sua casa é um ato de coragem. Mas penso que há também o risco do isolamento, que, visto sem os óculos do romantismo, mormente para um artista cujas ambições – abandono do cancioneiro popular e abraço à missão da ópera e da música de concerto – não são segredo para ninguém, pode ser um risco. Arte é produção, mas também circulação e consumo (no melhor sentido da palavra). Apenas na partitura – quando na partitura! – uma música, por mais genial que seja, são apenas rabiscos, garatujas. E quando de boa qualidade, penso que ela deve chegar integralmente ao público, pru mode ser apreciada.
Mas, voltando à idéia inicial, uma cidade do interior pode ter uma vida cultural ativa, mesmo que simples, desde que haja pessoas interessadas em cultura; instituições públicas e privadas motivadas em promovê-la; condições técnicas, econômicas, sociais para que os espetáculos cheguem a quem de interesse; predisposição para o debate, com informação e sem mitificação; preocupação com a formação de novos públicos, sem que se nutram ranços de qualquer espécie contra os hábitos disseminados do consumo da cultura de massa; etc., etc., etc..Não me proponho, com tais enumerações, a um receituário para a culinária cultural. Não sou candidato a nada, nem falo me apoiando sobre qualquer outro tipo de pedestal. No entanto, como pessoa interessada, não vejo maiores problemas em desejar que (mais uma vez, problemas específicos de Vitória da Conquista) concertos como o de Turíbio Santos, realizado no SESC, há pouco mais de um mês, possam ser divulgados em uma mídia que se assemelhe menos a uma bola de cristal; que essa bendita cidade volte, por meio da Secretaria de Cultura pelo menos, a estimular a comemoração e manutenção das tradições juninas, expurgando de vez a idéia de que tais eventos não cabem mais, porque a cidade cresceu muito; que o conservatório municipal e as academias particulares promovam recitais mais freqüentes e até mais ambiciosos, viabilizando a presença de “convidados especiais”; que as pessoas se dêem, também, ao trabalho de buscar a informação e se dignem a prestigiar aqueles eventos que forem minimamente do seu interesse;e mais um vastíssimo etcétera. Por fim, que reverbere o debate aqui proposto. Até mais.

Vanderli Marques

SOBRE A TRAGICIDADE DA VIDA

(REMBRANDT - O filósofo em meditação )










Há algum tempo, venho observando a relação das pessoas com as tristezas, e quantas vezes ouvi expressões do tipo:


“Aí que música triste, como alguém escuta isso?”;

“Aí que poema triste, Deus me livre!”;

“Não agüento estes filmes tristes que você vê”

etc


Por outro lado, vejo o tempo todo na tevê, nos anúncios e nas frases feitas o chamamento ao alto astral! À auto-estima! À felicidade! Ao sucesso...


Fico pensando – que mundo é este em que as pessoas acreditam que as palavras e o auto-convencimento ( ou seria auto-engano?) podem gerar tal como num laboratório a felicidade, e o que me parece ainda mais inacreditável, este mundo de felicidade in vitro exclui incondicionamente a possibilidade de falar, pensar e considerar a tristeza humana.


Esta “ideologia do sucesso”, além de barulhenta, parece-me uma fuga do mundo real, quer seja na versão pauliniana ( o mundo é um vale de lágrimas), quer na nietzschiana (O deserto cresce. Aí daquele que contempla o deserto).


Cultivar as tristezas, certamente, não é o caminho, no entanto, escondê-las embaixo do tapete também não.


Do alto de minha insignificância, acredito que o melhor caminho seja o enfrentamento, ou como ensina Viktor Frankl no Otimismo Trágico:


“Ninguém conseguirá evitar o confronto com o sofrimento inarredável, a culpa insuperável e,finalmente, a morte inevitável. A questão que ora se propõe assim se enuncia: como se pode dizer sim a vida, apesar de todos esses aspectos trágicos da existência humana? Uma outra pergunta se relaciona com esta e a complementa: pode a vida, apesar de todos os seus aspectos negativos, ter um sentido – conservar o sentido sob quaisquer condições e em qualquercircunstância? A resposta dependerá de imediato da disposição de encararmos de frente a vida nosentido, por exemplo, de uma passagem da carta de Rilke endereçada à Duquesa Sizzo, nestes termos: ‘Quem não aceitar a tragidade da vida através de uma resolução definitiva, a ponto de aclama-la, jamais entrará na posse dos inefáveis poderes da nossa existência ao contrário, ficará à deriva e terá sido, no momento decisivo, nem vivo nem morto’”.



O fato de não meditar sobre as tristezas humanas e, principalmente, sobre as nossas de cada dia não evita a existência delas, e mais, escondê-las de nós mesmos pode nos levar a criação de monstros, de dragões terríveis e, às vezes, inteiramente falsos.


Digo isso, não para entristecer as pessoas ou porque eu esteja especialmente triste – digo isso, porque acredito que a vida só vale a pena ser vivida em toda a sua realidade, sem fundos (imaginários) azuis ou rosas ou sombrios ou ilusões ou mascaras fantasiosas...


O fato de a vida ser bela, e eu acredito nisso, não significa que ela seja boba, pueril ou “poliana”.

***

SOBRE OS AUTORES CITADOS:

Viktor Frankl é o criador da Logoterapia, ou seja, uma terapia que centra sua busca no sentido, uma vez que um dos maiores problemas do nosso tempo é a falta de sentido.
Frankl escreveu vários livros, o mais famoso (e a melhor introdução a sua psicologia) é a sua quase biografia, na qual relata a sua vivência num campo de concentração nazista durante a 2ª Guerra Mundial - Em Busca de Sentido (Editora Vozes). Um livro fácil de encontrar/encomendar e que não é caro.

Rainer Maria Rilke – É um grande poeta da língua alemã que viveu no final do século XIX e inícios do século XX e, além da poesia, dedicou-se ao “estudo” das artes plásticas e escreveu um livro muito conhecido – Cartas a um jovem poeta (Editora Globo). Um livro também fácil de encontrar/encomendar e que não é caro.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

A VERDADE SOBRE OS MELHORES POEMAS

Quando penso nas qualidades intrínsecas que fazem de um poema um bom poema, só me vem uma à cabeça. Um bom poema é aquele que dá às palavras dedos de mãos suaves, embora fortes o suficiente a ponto de nos segurar a nós ou aos ponteiros de todos os relógios por um segundo. O homem vive ocupado correndo desesperadamente de um lado para o outro, de modo que seu tempo é tão estreito que nem dá mais para sonhar. Um poema verdadeiramente belo pode ser lido na net, numa coluna do jornal, na agenda alheia, na carta do amigo, no adesivo do pára-brisas, no rabisco de uma carteira anônima do colégio, num livro, na voz de um desconhecido ou daquele alguém... Enfim, pode estar em qualquer lugar, mas é capaz de nos fazer parar, capaz de nos deter e nos fazer olhar involuntariamente para belezas que sequer cogitávamos. Capaz de nos fazer sentir o possuir de um coração que se emociona nos trazendo a certeza de que ainda somos seres humanos. Sabe-se que a palavra bíblica empregada no Novo Testamento para "feitura" é a mesma no original para poesia. Quando a Bíblia diz que somos feitura dEle é o mesmo que declarar: somos poesias de Deus. É por isso que um bom poema nos faz parar, pois o GRANDE POETA de alguma forma nos fala através da beleza dos versos. Talvez não seja loucura dizer que todo bom poema tenha um pouco da voz de Deus.

(joão marcos)

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Um poema de Rainer Maria Rilke

A PANTERA

Rainer Maria Rilke


Varando a grade, a nada mais se agarra
o olhar tomado de um torpor profundo:
para ela é como se houvesse mil barra
se, atrás dessas mil barras, nenhum mundo.

Seu firme andar de passos gráceis, dentro
dum círculo talvez muito apertado,
é uma dança de força em cujo centro
ergue-se um grande anseio atordoado.

De raro em raro, só, o véu das pupilas
abre-se sem ruído — e deixa entrar
a imagem, que sobe, pelas tranqüilas
patas, ao coração, para aí ficar.

(Tradução de capixaba Geir Campos)