domingo, 26 de agosto de 2007

Mais histórias da Carochinha

Aproximam-se as eleições municipais. Estamos a pouco mais de um ano delas. Não se justifica por pressa ou precipitação, o presente texto. Até mesmo porque a eleição é apenas álibi, falaremos exatamente de um tentáculo dela, o discurso dos candidatos. Já posso ouvir, inclusive, um murmúrio nas ruas sobre as eleições para as eleições, aquela coisa do candidato a candidato, as chamadas prévias. E já posso entrever a ferrugem da língua, o rangido dos dentes – o que me faz pensar em uma máquina caduca querendo se passar por último lançamento do mercado.
Povo da minha cidade: “Era uma vez um príncipe traído e banido do seu reino, mas que agora volta de espada em punho para libertar o seu povo do jugo dos tiranos que não honraram a coroa posta em suas cabeças..., ou um caçador que matou um lobo, salvando uma idosa e uma criancinha indefesa das suas garras..., ou um sapo aparentemente asqueroso que, após um beijo do seu eleitor, virou um príncipe belo, tinindo para mais um idílio de quatro anos...”, ou qualquer outra história da Carochinha, porque todas convêm a quem gosta de ouvi-las.
Quem não conhece, por exemplo, a historinha do político, arauto dos novos tempos da era da informação, que não promete com um toque de sua varinha de condão, universalizar a educação e, concomitantemente, honrar aqueles que vivem por essa causa (poço sem fundo dos problemas sociais brasileiros). Pois bem, pensando a respeito comecei a reparar: um policial rodoviário federal ganha mais que um professor doutor de uma universidade estadual da Bahia; a grande maioria dos concursos públicos com exigência de diploma de nível médio remunera melhor que o melhor dos salários dos professores também concursados para a área de educação; até os salários para técnicos do MEC são inferiores aos dos demais ministérios; e dos professores das redes municipais pelo Brasil afora nem dá para falar, para não amargarmos a constatação de que muitos deles vivem com um décimo do salário de pessoas de mesma qualificação que atuem em outras áreas.
Talvez, por isso, eu só consiga escrever sobre esse tema sob o amparo da ironia, alegorizando com os contos de fadas, os discursos dos políticos – candidatos ou não a prefeito – e também dos intelectuais, dos professores, dos pedagogos e de todos aqueles que discorrem sobre a educação neste país, todos vítimas de uma construção discursiva irritante: a de que o futuro do Brasil depende da educação. Irritante porque isso não é coisa que se discuta, mas que se assuma. E na nossa sociedade ninguém o assume. A instituição escolar neste país é subvalorizada. Todos os seus profissionais são subvalorizados. Os alunos, as famílias, todos subvalorizados. Educar, para nós, é uma questão menor. Queremos mesmo é ficar ouvindo a melodia de algum instrumento encantado que nos conduza de ano em ano às urnas, já que, assim, quando o castelo estiver ruindo, teremos a desculpa vitimista de que não sabíamos o que estávamos fazendo.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

COISAS DO PARAÍSO


"João Crisóstomo disse que Deus deixou para os seres humanos algumas coisas do paraíso: as estrelas no céu, as flores no campo e os olhos das crianças. Tomás de Aquino complementa dizendo que Crisóstomo teria esquecido duas coisas: o vinho e o queijo".(Anselm Grün)

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

(Catedral de Ulm)


Palavras de Ingmar Bergman no início do roteiro do filme O Sétimo Selo:




“Pondo de lado as minhas crenças e as minhas dúvidas, que não tem importância neste caso, é minha opinião que a arte perdeu seu impulso criador básico no momento em que se separou do culto. Ela cortou um cordão umbilical e leva agora uma vida estéril, gerando-se e degenerando-se. No passado o artista permanecia ignorado e sua obra existia para glória de Deus. Ele vivia e morria sem ser mais importante do que outros artesãos; ‘valores eternos’, ‘imortalidade’ e ‘obra-prima’ eram expressões não aplicáveis no seu caso. A capacidade de criar era um dom. Num mundo assim floresciam a convicção inabalável e a humildade natural.Hoje o indivíduo se tornou a mais alta forma de criação artística, o que é também a maior desgraça. A menor ferida ou aflição do ego é examinada sob um microscópio como se tivesse importância eterna. O artista considera seu isolamento, sua subjetividade, seu individualismo quase sagrados. Assim finalmente nos juntamos num enorme cerrado e nos pomos a balir a nossa solidão sem nos ouvirmos e sem percebermos que nos consumimos em fogo lento. Os individualistas fitam-se nos olhos e no entanto cada um nega a existência do outro. Andamos em círculos, tão limitados por nossas ansiedades que já não conseguimos distinguir o verdadeiro do falso.


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Assim, se me perguntassem o que eu gostaria que fosse o objetivo de meus filmes, eu responderia que quero ser um dos artistas da catedral na grande planície. Quero fazer uma cabeça de dragão, um anjo, um demônio – ou talvez um santo – de pedra. Não importa qual; o sentimento de satisfação é que conta. Independentemente de crer ou não, de ser cristão ou não, eu faria a minha parte na construção coletiva da catedral”.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Um Olhar Perdido no Infinito - Fábio Sena


Antes de Laércio enlouquecer de vez, era eu seu mais íntimo amigo. Acompanhei seu progresso em direção à loucura, e fui seu ouvinte mais que atencioso, quando, monologando, expunha para si – e, por conseqüência, para mim – sua visão das coisas e do mundo. Hoje, que o vejo com o olhar perdido em direção ao infinito, tenho a nítida sensação de que ele sabe quem sou, sabe o que estou pensando, mas, por algum motivo que desconheço, me inclui no rol de todos aqueles que ele ignora, neste mundo para o qual ele dedica sua mais perfeita indiferença. Fico observando esses funcionários todos que perambulam pelo corredor, e me pergunto: por quê?. Laércio, sujeito educado, cheio de pudores, filhos de pais honrados, irmão de Virgínia e de Péricles, ali, vestindo aqueles trapos indignos do grande pensador que eu conheci, alimentando-se como qualquer ser incivilizado, e com aquele olhar perdido em direção ao infinito. Se acaso eu estivesse próximo dele naquele momento fatal em que sua razão entrou em colapso, tê-lo-ia despertado; seguraria seus ombros com força, e gritaria em seus ouvidos: fique lúcido! Jogá-lo-ia no banheiro e despejaria água fria em sua cabeça. Se acaso eu estivesse nas imediações quando aquele “fio tênue que separa a razão da loucura” fosse diluído, desaparecesse, “reiniciaria a máquina”, para manter a configuração original. Mas eu estava distante o suficiente, e agora, impotente, nada mais me resta a fazer, senão olhar para ele e aguardar que desvie por um momento seus olhos - perdidos em direção ao infinito – para mim e me perceba, e me dê, por um instante que seja, a sensação de que me entende e que me ouve; que lance para mim, num rasgo de misericórdia, migalhas de sua atenção, sua lúcida atenção. Hoje, que me recordo de seus monólogos, não sei exatamente quem de nós dois está mais louco: “Nada disso faz sentido. Nutro meus instintos, mas eles não se satisfazem. Absorvo todos os ensinamentos que o mundo civilizado me pespega, mas eles me sufocam. Atravesso a catraca no ônibus, mas não entendo a razão de sua existência. Essa catraca é uma ofensa. Vejo Virgínia arrumando-se para ir no show do Fábio Júnior, mas não posso entender que ela não ouça uma única canção do Chico César. Mas se ela parar para escutar o Chico César, que lhe dará isso? Que importa Chico César e que valor tem ouvir Fábio Júnior?. Não gosto de cerveja, mas algo me diz que os homens me vêem menos homem por não gostar de beber. Não gosto de futebol, mas os homens me vêem menos homem por não gostar de esportes. E incomoda-me incomodar-me com o que pensam os homens. Pensem o que quiser, ora essa!. Poucas vezes vi Laércio sorrir. Sorria somente de suas próprias ironias e das bobagens que eu dizia. Hoje, quando ele esboça um sorriso, sei que ri de nós todos; de mim, inclusive. Bem que ele podia poupar-me, já que sou seu amigo. Bem que podia, sussurrando, confidenciar-me: “Cara, eu tô fingindo... hehehe”. Mas, tão logo desfaz o efêmero sorriso, lá vem Laércio, novamente, com aquele olhar perdido em direção ao infinito, relegando-me, novamente, à sua sarcástica indiferença. Saio do Hospital Afrânio Peixoto zangado com Laércio. Ri de mim, me faz de doido e me insulta com sua supra-lucidez. No trânsito, de volta pra casa, loucos de toda espécie me circundam, me acenam. Todos estão olhando para algum ponto fixo, mas só Laércio olha, com seu olhar perdido, para o infinito.