sábado, 26 de maio de 2007

ENTREVISTA - RICARDO ARAÚJO


UMA CONVERSA SOBRE A FILOSOFIA




Ricardo Araújo é filósofo com doutorado pela UFRJ. Nesta entrevista (realizada por email) ele conversa sobre a filosofia e o filosofar, sobre a literatura como abertura para o pensamento, sobre Nietzsche e Heidegger e sobre a possibilidade/tarefa do pensamento hoje.




- O que levou você à filosofia?


Conheci a Filosofia através da literatura. Por volta dos dezessete anos, fiquei viciado em literatura russa: Tolstoi, Gorki, Tchekov e, acima de todos, Dostoievski. Fiquei muito curioso com um tal de Nietzsche, que as introduções aos romances costumavam mencionar, ligando-o a Dostoievski, de forma muito próxima e através de uma palavra estranha, “niilismo”, que eu acreditava derivar, de algum modo, do nome “Nietzsche”. Na mesma época, li “O lobo da estepe”, de Hermann Hesse, e fiquei absolutamente fascinado pela obra. Mas fiquei ainda mais impressionado pelo fato de ter lido em algum lugar que o personagem central, Harry Haller, havia sido inspirado naquele mesmo Nietzsche que ligavam ao meu ídolo russo. Daí para as primeiras leituras do filósofo foi uma questão de necessidade intelectual. Li de uma só vez todas as obras que encontrei, quase sempre nas edições da Ediouro, com suas traduções horríveis, mas valiosas pelo pioneirismo e pela acessibilidade.

Em virtude desse encontro, em uma época de enorme avidez intelectual acompanhada por igual imaturidade, não poderia haver outro resultado senão virar um nietzschiano da pior espécie, daqueles que Nietzsche confessava temer e que caricaturou como “os seguidores” em seu Zaratustra. Arrisco-me a dizer que a figura do burro, adorado como um deus no final da obra, é parcialmente composta por esta idéia do “seguidor”, o que pode ser deduzido da sua resposta a tudo que lhe é dito: “Mas a isto o burro disse ‘I-A’”.

Então, passei quase quinze anos dizendo “I-A” a tudo que Nietzsche havia dito, só conseguindo me libertar da minha própria imaturidade de discípulo quando terminei minha dissertação de mestrado sobre a “vontade de poder”, deixando como resultado dessa jornada: uma dissertação, alguns artigos, algumas palestras, a leitura obcecada e inúmeras vezes repetida de tudo que ele escreveu e de incontáveis obras de comentadores. Aí, depois de me tornar um “especialista” em Nietzsche, parei de ler qualquer coisa escrita por ou sobre ele, não voltando a fazê-lo até hoje, e fui conhecer a Filosofia, por mim mesmo e não mais guiado por seus olhos, embora seja profundamente marcado por algumas idéias nietzschianas e deva admitir que ele tocou a Verdade de um modo que poucos fizeram.


- O que é a filosofia?


Essa é a pergunta que Platão lançou de forma sub-reptícia no “Sofista” e que virou parte da própria Filosofia. De fato, esta começa apenas a partir de Platão e só se torna digna desse nome quando, ao mesmo tempo em que tenta “aprisionar” os entes na linguagem e ligá-los ao que é (ao ser), ela se mantém navegando no leito daquela pergunta. Assim, a Filosofia é aquele pequeno (em relação à duração e à quantidade, mas não ao significado) recorte na linguagem que consegue se manter nas três exigências mencionadas, ou seja, a Filosofia é um discurso simultaneamente: 1) fundado em si mesmo, o que só ocorre à medida que se questiona radical e permanentemente; 2) capaz de reter, unívoca e essencialmente, os entes para os quais se volta, sejam eles quais forem (a linguagem, o homem, a liberdade, o belo ou, por outro lado, o político, o amor, o riso, a técnica, etc.); 3) voltado para a totalidade do que é, a cada vez que se volta para um ente qualquer.



("cena" da ópera O Ouro do Reno de Richard Wagner)


- Qual a necessidade da filosofia no mundo contemporâneo?


Qual a necessidade da fundação de uma casa para aqueles que nela habitam?

O mundo contemporâneo foi erguido, em muitos aspectos, sobre o percurso histórico da Filosofia. Mas exatamente por ter servido como fundamento, a Filosofia não “aparece” mais, não pode ser vista, a não ser por aqueles que conhecem a construção histórica em que estamos. Para estes, o mundo está repleto do selo da Filosofia: da organização política à vigência da técnica; da cristandade às ciências particulares; do senso comum às crises éticas. Muito do nosso modo de vida, de nossas instituições, de nossa linguagem, de nosso modo de pensar mais cotidiano são desdobramentos de pensamento filosófico, ainda que subterrâneo, diluído, utilizado, desvirtuado, etc..

Por outro lado, não faltam “idiotas da objetividade” para menosprezar aquilo que não podem compreender, o que nos leva a ouvir tolices que vão do cotidiano e ingênuo “pra que estudar esses homens mortos?!” ao cientificista e arrogante “só o saber científico é válido”. Mas até mesmo o utilitarismo e o positivismo, esses “filhos feios e embaraçadores” surgem da Filosofia e a ela retornam, ainda que de forma capenga, quando precisam dar razão de si mesmos, configurando aquilo que Dostoievski chamou de “semiciência”, um saber que não chegou até onde deveria e que, por isso mesmo, não sabe de si.

Volto então à pergunta. Há, ainda, alguma necessidade da Filosofia? Ou não será, talvez, que nunca houve uma e que a Filosofia pertence àquele âmbito do abundante, do transbordante de si mesmo que, no fim das contas, caracteriza a liberdade humana? Se for assim, a Filosofia pode ser comparada ao ouro do Reno da fábula wagneriana: aquele que amaldiçoasse o amor poderia forjar desse ouro o anel do poder, tornando-se imensamente poderoso; aquelas que o guardavam se extasiavam com ele, desfrutando-o; porém, para além dessas perspectivas, mesquinhas ou não, o ouro do Reno brilhava em si mesmo, gratuitamente, em toda sua abundante plenitude.


- O que é fazer filosofia hoje?


Difícil fugir do diagnóstico heideggeriano... Por razões de tipos diversos, econômicas, históricas, sócias, mas, no fundo, ontológicas, como destino/envio do ser, há muito que a Filosofia se tornou uma atividade técnica, isto é, acadêmica, erudita, operacional e, portanto, produtiva, geradora de resultados que alguns chegam a considerar “científicos”), . Todavia, isto não significa que, longe desse burburinho, ela não esteja viva, ainda que como em um casulo, metamorfoseando-se em figuras que não conhecemos, mas cuja possibilidade Heidegger, por exemplo, tentou indicar com sua obra madura, especialmente com o que ele denominou o “Andenken”, um pensamento voltado para o ser, não mais como fundamento ôntico, como causa última do real, mas como aquilo que há e que a Filosofia, antes de se dissolver nas ciências, em particular, e na constituição do mundo contemporâneo, em geral, buscou indicar.


- Qual a tarefa do filósofo num tempo de relativismo, como o nosso?


Se “tarefa” for compreendida como dever, como norte, diria que é não fazer filosofia como técnica. É sair das correntes, linhas de pesquisa, áreas de interesse e tudo aquilo que caracteriza o academicismo contemporâneo. Isto não significa sair do meio acadêmico no sentido prático, isto é, deixar de lecionar, de publicar em periódicos especializados, de participar de congressos, etc., mas significa pensar com uma pretensão que talvez não caiba em tais práticas e que, certamente, não será bem vista pelas perspectivas correspondentes; significa arriscar o olhar na direção daquilo que moveu os filósofos, daquilo que fez reluzir o “ouro do Reno”, em vez de olhar para seu reflexo, escarafunchando-o tecnicamente com um perene “I-A”.

3 comentários:

Anônimo disse...

Excelente a entrevista. Acredito que ouvir outras pessoas que mantêm vivo o gosto pelo que hoje o utilitarismo arrogante considera como supérfluo é importantíssimo. Sobretudo com a honestidade e beleza das palavras de Ricardo. Mas faço uma queixa que espero ver respondida logo: foi muito rápida.

Elton Quadros disse...

Bite,

Essa foi a minha primeira entrevista, primeira também por email e, como todo mundo, estou sem tempo para alongar a conversa. Mas, não se preocupe não, deverei voltar com outras entrevistas e com o próprio Ricardo.
No entanto, deixar esse "gostinho de quero mais" é muito bom também!

Abraços deste malungo.

Anônimo disse...

Gostei muito da entrevista. Em tempos de relatividades excessivas, é muito bom ouvir/ler algo que pulsa e vibra.

Enfim, as palavras de Ricardo valorizam o ofício e, principalmente, a vida. E, realmente, ficou um gostinho de quero mais - aliás, como tudo que é bom e a gente tenta prolongar...