sábado, 19 de maio de 2007

À mancheia

Asta su Abuelo Goya




Em dias em que o valor de um espetáculo artístico se mede mais pelos reais do cachê ou da notoriedade midiática dos artistas que dele participam, que podem esperar as pessoas que vivem nas cidades do interior do Brasil, fora dos eixos geográficos economicamente privilegiados ou dos circuitos dos grandes acontecimentos culturais? Por certo que os rotineiros discursos autopiedosos de muitos provincianos com a síndrome da exclusão dão uma certa sensação de alívio: elegem os inimigos do conhecimento; desqualificam o sistema de excludência em que vivemos; lamentam os filmes não vistos e as exposições não-visitadas; mas é só. Os inimigos permanecem invisíveis; o sistema, e o que quer que seja que essa palavra signifique, permanece na comodidade intangível de que só desfrutam as abstrações mais distantes; e o que não se viu, se perdeu... até que um dia se possa ver.
Nas cidades do interior do Brasil – e não apenas nelas, é óbvio – é preciso que se ressuscite o já cansado conceito de cidadania, que faria acordar do sono da inapetência as secretarias de cultura de cada município, que existem, se não estamos equivocados, para elaborar e executar projetos culturais; para fazer acontecer um calendário mínimo de celebrações artísticas; para fomentar, em parceria com escolas, centros de cultura, universidades e agremiações afins diversas, a produção e a execução de eventos dessa natureza.
Não se deve, no entanto, pensar no Louvre, quando se pede que um museu possa mostrar para o visitante a história de uma cidade, por mais modesta que ela seja; não se devem esperar as pompas de um grande palco, quando um conservatório prepara recitais com os seus alunos, para mostrar para o público um pouco de música de concerto, totalmente ausente dos repertórios dos programas de rádio, ou mesmo das prateleiras das lojas convencionais de cds e dvds; não se deve esperar muita suntuosidade, quando determinadas datas comemorativas, em dimensão regional ou nacional, são celebradas em espaço público, por artistas locais. Mas é possível, perfeitamente, manter uma vida culturalmente ativa, dignificando valores que de há muito a grande mídia, sobretudo a televisiva, sobretudo em horários razoáveis para o público, não veicula mais. Manter vivo o gosto pela cultura é tarefa das autoridades – como já o dissemos – mas também de cada pessoa. O estudante, o trabalhador, o intelectual, o próprio artista, devem cultivar hábitos que estimulem quem cria e também quem deve fazer circular a informação cultural.
Saindo do âmbito das generalidades, situo o meu discurso em Vitória da Conquista, Ba, cidade onde moro. Cerca de trezentos mil habitantes, dois campi de universidades públicas e algumas outras instituições de ensino superior privado. Juventude festiva e acolhedora. Comércio pujante. Pólo educacional em torno do qual gravitam diversas outras cidades do sudoeste baiano e até do Norte de Minas. Terra do frio. Dois museus, um centro de cultura, um cinema multiplex, um cinema falido (o que aqui é uma verdadeira instituição), uma biblioteca pública municipal e outras duas (bibliotecas?) pertencentes às universidades UESB e UFBA. Blábláblá, blábláblá. Pois bem, clichês à parte, não é necessariamente para aplicar o que fora dito mais acima que eu me refiro a Vitória da Conquista. Eventos culturais, mesmo que esporádicos, mesmo que restritos, mesmo que monotemáticos, os há. E quem não gostar que faça melhor, ou diferente. Eis o problema: todo mundo gosta. Ou se não gosta, ainda não se manifestou. É o outro abacaxi. Parece-me chegada a hora de romper o consenso. Por exemplo: “Conquista é uma cidade com vocação para o cinema.” Por que motivo? Poderia alguém perguntar. E esse alguém até poderia ser eu. Seria porque Glauber Rocha nasceu aqui!? Seria porque Walter Sales escolheu-a para palco de Central do Brasil?, que inclusive concorreu ao Oscar? Não quero ser irônico, tampouco iconoclasta, mas levo muito a sério esta cidade, lugar onde nasci, cresci e ainda vivo, para acreditar que ela, ou qualquer outra, não importa, tenha VOCAÇÃO para alguma coisa. Glauber, por exemplo, na minha modesta opinião, chegou onde chegou, não porque aqui nasceu, mas porque daqui se foi (voltou algum dia?), ou se pode fazer cinema fora dos grandes centros, em algum vocacionário sem aparato técnico e humano? “Mas Elomar”, diria alguém, “aqui ficou e é quem ele é.” O ofício de Elomar Figueira (Ave, Mestre!) – outro consenso absoluto, do qual também faço parte, porque amo profundamente o seu cancioneiro – felizmente é menos complicado. Um violão, a imensidão da caatinga, o cicio dos bichos e a alma sensitiva de um rústico peão com diploma de arquiteto, que Fugiu das urbes imensas para não se contaminar com os estrangeirismos e modismos e deslumbramentos e toda sorte de tumores de que só o sertão poderia salvaguardá-lo. E parece que salvaguardou. Nada de dodecafonismo, de emepebismo, de jazzismo, de encheções da grande mídia, de teorias excessivas, da técnica apurada ao contrapeso da nenhuma inspiração. Mais uma vez, na minha modestíssima opinião, bater o pó das influências alienígenas às portas da sua casa é um ato de coragem. Mas penso que há também o risco do isolamento, que, visto sem os óculos do romantismo, mormente para um artista cujas ambições – abandono do cancioneiro popular e abraço à missão da ópera e da música de concerto – não são segredo para ninguém, pode ser um risco. Arte é produção, mas também circulação e consumo (no melhor sentido da palavra). Apenas na partitura – quando na partitura! – uma música, por mais genial que seja, são apenas rabiscos, garatujas. E quando de boa qualidade, penso que ela deve chegar integralmente ao público, pru mode ser apreciada.
Mas, voltando à idéia inicial, uma cidade do interior pode ter uma vida cultural ativa, mesmo que simples, desde que haja pessoas interessadas em cultura; instituições públicas e privadas motivadas em promovê-la; condições técnicas, econômicas, sociais para que os espetáculos cheguem a quem de interesse; predisposição para o debate, com informação e sem mitificação; preocupação com a formação de novos públicos, sem que se nutram ranços de qualquer espécie contra os hábitos disseminados do consumo da cultura de massa; etc., etc., etc..Não me proponho, com tais enumerações, a um receituário para a culinária cultural. Não sou candidato a nada, nem falo me apoiando sobre qualquer outro tipo de pedestal. No entanto, como pessoa interessada, não vejo maiores problemas em desejar que (mais uma vez, problemas específicos de Vitória da Conquista) concertos como o de Turíbio Santos, realizado no SESC, há pouco mais de um mês, possam ser divulgados em uma mídia que se assemelhe menos a uma bola de cristal; que essa bendita cidade volte, por meio da Secretaria de Cultura pelo menos, a estimular a comemoração e manutenção das tradições juninas, expurgando de vez a idéia de que tais eventos não cabem mais, porque a cidade cresceu muito; que o conservatório municipal e as academias particulares promovam recitais mais freqüentes e até mais ambiciosos, viabilizando a presença de “convidados especiais”; que as pessoas se dêem, também, ao trabalho de buscar a informação e se dignem a prestigiar aqueles eventos que forem minimamente do seu interesse;e mais um vastíssimo etcétera. Por fim, que reverbere o debate aqui proposto. Até mais.

Vanderli Marques

4 comentários:

Elton Quadros disse...

Esse seu texto justifica a criação deste blog.

Muito bom... para início de conversa.

Abraços deste malungo

Anônimo disse...

E há mais uma coisa para fomentar esse precioso debate proposto por Bite: em Vitória da Conquista, a nossa secretaria chama-se: SECRETARIA DE CULTURA, TURISMO, ESPORTE E LAZER! Será que a lógica proposta pelo meu texto funciona para este caso? Quanto mais, menos!

Elton Quadros disse...

Acredito que o problema cultural de Conquista tem duas vias.

A 1ª o "individual" (e isso não é apenas conquistense). Quem está seriamente interessado em adquiri cultura e viver os "sacrifícios" necessários: tempo, dinheiro, lazer etc?

A 2ª é o "eventismo". Não existe em Conquista nenhuma iniciativa de formação e consolidação de um publico, quer seja de cinema, teatro, música erudita, literatura, filosofia, artes plásticas etc etc

Geralmente, a prefeitura realiza um evento no fim do ano e, um ou outro evento ao longo do ano, e é isso... Iniciativas privadas também são raras.

É preciso pensar e realizar projetos que visem a formação de um publico e não somente a publicidade e/ou o populismo.

Outro abraços deste malungo

Anônimo disse...

Mor barato...