quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Um Olhar Perdido no Infinito - Fábio Sena


Antes de Laércio enlouquecer de vez, era eu seu mais íntimo amigo. Acompanhei seu progresso em direção à loucura, e fui seu ouvinte mais que atencioso, quando, monologando, expunha para si – e, por conseqüência, para mim – sua visão das coisas e do mundo. Hoje, que o vejo com o olhar perdido em direção ao infinito, tenho a nítida sensação de que ele sabe quem sou, sabe o que estou pensando, mas, por algum motivo que desconheço, me inclui no rol de todos aqueles que ele ignora, neste mundo para o qual ele dedica sua mais perfeita indiferença. Fico observando esses funcionários todos que perambulam pelo corredor, e me pergunto: por quê?. Laércio, sujeito educado, cheio de pudores, filhos de pais honrados, irmão de Virgínia e de Péricles, ali, vestindo aqueles trapos indignos do grande pensador que eu conheci, alimentando-se como qualquer ser incivilizado, e com aquele olhar perdido em direção ao infinito. Se acaso eu estivesse próximo dele naquele momento fatal em que sua razão entrou em colapso, tê-lo-ia despertado; seguraria seus ombros com força, e gritaria em seus ouvidos: fique lúcido! Jogá-lo-ia no banheiro e despejaria água fria em sua cabeça. Se acaso eu estivesse nas imediações quando aquele “fio tênue que separa a razão da loucura” fosse diluído, desaparecesse, “reiniciaria a máquina”, para manter a configuração original. Mas eu estava distante o suficiente, e agora, impotente, nada mais me resta a fazer, senão olhar para ele e aguardar que desvie por um momento seus olhos - perdidos em direção ao infinito – para mim e me perceba, e me dê, por um instante que seja, a sensação de que me entende e que me ouve; que lance para mim, num rasgo de misericórdia, migalhas de sua atenção, sua lúcida atenção. Hoje, que me recordo de seus monólogos, não sei exatamente quem de nós dois está mais louco: “Nada disso faz sentido. Nutro meus instintos, mas eles não se satisfazem. Absorvo todos os ensinamentos que o mundo civilizado me pespega, mas eles me sufocam. Atravesso a catraca no ônibus, mas não entendo a razão de sua existência. Essa catraca é uma ofensa. Vejo Virgínia arrumando-se para ir no show do Fábio Júnior, mas não posso entender que ela não ouça uma única canção do Chico César. Mas se ela parar para escutar o Chico César, que lhe dará isso? Que importa Chico César e que valor tem ouvir Fábio Júnior?. Não gosto de cerveja, mas algo me diz que os homens me vêem menos homem por não gostar de beber. Não gosto de futebol, mas os homens me vêem menos homem por não gostar de esportes. E incomoda-me incomodar-me com o que pensam os homens. Pensem o que quiser, ora essa!. Poucas vezes vi Laércio sorrir. Sorria somente de suas próprias ironias e das bobagens que eu dizia. Hoje, quando ele esboça um sorriso, sei que ri de nós todos; de mim, inclusive. Bem que ele podia poupar-me, já que sou seu amigo. Bem que podia, sussurrando, confidenciar-me: “Cara, eu tô fingindo... hehehe”. Mas, tão logo desfaz o efêmero sorriso, lá vem Laércio, novamente, com aquele olhar perdido em direção ao infinito, relegando-me, novamente, à sua sarcástica indiferença. Saio do Hospital Afrânio Peixoto zangado com Laércio. Ri de mim, me faz de doido e me insulta com sua supra-lucidez. No trânsito, de volta pra casa, loucos de toda espécie me circundam, me acenam. Todos estão olhando para algum ponto fixo, mas só Laércio olha, com seu olhar perdido, para o infinito.

4 comentários:

Anônimo disse...

Primeiro texto de Fábio Sena neste Blog. Oxalá seja o início de muitos. Seja bem vindo ao sítio dos Catingueiros.

Anônimo disse...

Já não era sem tempo, Fabinho. è bom ver que você não perdeu a majestade. Que belo texto!

Anônimo disse...

Já não era sem tempo, Fabinho Sena. É bom ver que não perdeste a majestade. Que belo texto!

Elton Quadros disse...

Bem-vindo Fabinho!